sábado, 11 de setembro de 2010

Manoel de Barros - Olhos Parados


Ah, ouvir mazurcas de Chopin num velho bar, domingo de manhã!
Depois sair pelas ruas, entrar pelos jardins e falar com as crianças.
Olhas as flores, ver os bondes passarem cheios de gente.
E, encostado no rosto das casas, sorrir...

Saber que os olhos estão perfeitos e que as mãos estão perfeitas.
Saber que os ouvidos estão perfeitos. Passar pela igreja.
Ver as pessoas rindo. Ver os namorados cheios de ilusões.

Sair andando à toa entre as plantas e os animais.
Ver as árvores verdes dos jardins. Lembrar das horas mais apagadas.
Por toda parte sentir o segredo das coisas vivas.
Entrar por caminhos ignorados, sair por caminhos ignorados.

Ver gente diferente de nós nas janelas das casas, nas calçadas, nas quitandas.
Ver gente conversando na esquina, falando de coisas ruidosas.
Ver gente discutindo comércio, futebol e contando anedotas.
Ver homens esquecidos da vida, enchendo as praças, enchendo as travessas.

Olhar, reparar em tudo, sem a menor intenção de poesia.
Girar os braços, respirar o ar fresco, lembrar dos parentes.
Lembrar da casa da gente, das irmãs, dos irmãos e dos pais da gente.
Lembrar que estão longe e ter saudade deles...

(...)

Lembrar das viagens que a gente já fez e de amigos que ficaram longe.
Lembrar dos amigos que estão próximos e das conversas com eles.
Saber que a gente tem amigos de fato!
Tirar uma folha de árvore, ir mastigando, sentir os ventos pelo rosto...

Sentir o sol. Gostar de ver as coisas todas.
Gostar de estar ali caminhando. Gostar de estar assim esquecido.
Gostar desse momento. Gostar dessa emoção tão cheia de riquezas íntimas.
Pensar nos livros que a gente já leu, nas alegrias dos livros lidos.

(...)

Como é bom ter vindo de tão longe, estar agora caminhando.
Pensando e respirando no meio de pessoas desconhecidas.
Como é bom achar o mundo esquisito por isso, muito esquisito mesmo.
E depois sorrir levemente para ele com seus mistérios...

Que coisa maravilhosa, exclamar. Que mundo maravilhoso, exclamar.
Como tudo é tão belo e tão cheio de encantos!
Olhar para todos os lados, olhar para as coisas mais pequenas,
E descobrir em todas uma razão de beleza.

Agradecer a Deus, que a gente ainda não sabe amar direito,
A harmonia que a gente sente, vê e ouve.
A beleza que a gente vê saindo das rosas; a dor saindo das feridas.
Agradecer tanta coisa que a gente não pode acreditar que esteja acontecendo.

(...)

sábado, 24 de julho de 2010

O Lado Quente do Ser

 O Lado Quente do Ser 
Maria Bethânia
Composição: Marina Lima - Antônio Cícero
Eu gosto de ser mulher
Sonhar arder de amor
Desde que sou uma menina
De ser feliz ou sofrer
Com quem eu faça calor
Esse querer me ilumina
E eu não quero amor nada de menos
Dispense os jogos desses mais ou menos
Pra que pequenos vícios
Se o amor são fogos que se acendem
Sem artifícios
Eu já quis ser bailarina
São coisas que não esqueço
E continuo ainda a sê-la
Minha vida me alucina
É como um filme que faço
Mas faço melhor ainda
Do que as estrelas
Então eu digo amor, chegue mais perto
E prove ao certo qual é o meu sabor
Ouça meu peito agora
Venha compor uma trilha sonora para o amor
Eu gosto de ser mulher
Que mostra mais o que sente
O lado quente do ser
Que canta mais docemente

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Sobre sentimentos e relações

     
       “Sabe quando a gente acorda um dia apaixonada por alguém?” Me disse uma amiga. Parei pra pensar, e isso acontece, ou acontecia, muito comigo. De repente tudo aquilo que alguém fez, falou, ganha uma carga afetiva diferente. De repente tudo muda. Vem de forma meio inexplicável, simplesmente a relação ganha outro sentido, faz todo sentido, ou, sentido nenhum. E daí, se prepare para uma montanha russa de sentimentos. Borboletinhas pelo corpo de todas as cores. A imagem que fazia parte do plano de fundo ganha destaque como ícone principal. É vontade louca de estar perto, às vezes só de ver, de saber o que o outro pensa, de querer que seja recíproco. Me desculpe, mas eu sou intensa. Vem junto da euforia o medo, o nervosismo, as expectativas. Delícia quando elas são correspondidas. O problema é: nem sempre as expectativas ganham a resposta desejada. Deve ser por isso que enjôo muito rápido das pessoas, crio muitas expectativas. As pessoas são cansativas, pois nunca são exatamente o que queríamos que fossem. Precisamos então sempre fazer um trabalho de aceitação, de aprender a ceder, ser mais flexíveis. Tornar-se flexível quando se é rígido, dói. Tem que ir dobrando, dobrando, forçando as arestas duras, até ficar mais maleável. É trabalhoso, mas é recompensador. A maioria dos meus grandes amigos, saberão eles agora, já me irritaram ou enjoaram em algum momento. Transformaram-se em grandes amigos porque conseguiram passar dessa fase de enjôo, quebra de expectativas, inicial. São grandes amigos, claro, antes de tudo, porque sintonizam bem comigo. Acho que quanto maior a sintonia, maior a expectativa para que ela aumente.
       O que fazer quando se precisa conviver com alguém que destoa de ti em muitos sentidos? Quando é, por exemplo, alguém de sua família: pai, mãe, irmão. Muitas vezes foi tentado um equilíbrio entre essas notas dissonantes, mas que não foi conseguido. Espera-se que as relações familiares sejam harmoniosas, mas pode acontecer de haver um choque de gigantes tão intenso, que seja difícil manter o bom relacionamento. Para piorar, há pessoas que não conseguem se manter ouvintes verdadeiras num diálogo, não estão dispostas a dobrar-se junto com o outro para haver melhor encaixe. O que fazer? Se alguém souber, me diga. Conversar não adiantou, a política de confronto também não. A solução que consigo vislumbrar é anular-se neste encontro. É difícil anular certos comportamentos, eles podem estar ligados estreitamente aos alicerces que constituem o eu. “Até cortar os próprios defeitos é perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.” - Clarice Lispector. Acho, no entanto, que às vezes é preciso se matar um pouco para não morrer. Segurar a respiração quando o ambiente é mau cheiroso (embora deixar de respirar seja fatal), enquanto caminha, para logo depois respirar livremente.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Novo Calor



Frio na barriga
Passa um arrepio
Essa espera que intriga
Meu quarto ainda vazio
Um jeito tão doce, boca tão rosa
Me dá uma sensação gostosa
É ventinho no pescoço
Mas também é furacão
Força de inverno, clima de verão
Linda, inteligente, cheia de vontade
Desejo que invade, fogo que me arde
Seu sorriso também é o meu abrigo
Mexeu comigo, mexeu comigo

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Sobre escrever



Gostei de escrever. Primeiro porque escrever é terapêutico, é um diálogo com nós mesmos, onde podemos organizar o mundaréu de vozes que ocupam a mente. Mas, apenas isto não me bastava, escrever era demasiado cansativo, já que organizar esta bagunça toda e transformar os pensamentos em um texto bom de ler dava um certo trabalho. Os comentários, no entanto, dos amigos funcionaram como reforço positivo. Percebi que o acolhimento, que sinto ao ler alguns autores foi o mesmo que senti ao me ler. Pensei, então, que posso aconchegar outras pessoas nos meus pensamentos, como Clarice Lispector, Manoel de Barros, Mario Quintana, fazem comigo. Claro que não se pode comparar a poética das palavras destes mestres às minhas, mas palavras são palavras, sentimento é sentimento, em qualquer lugar. Posso ajudar a fazer pensar, unindo meus pensamentos com os de outras pessoas. Um blog é bom pra isso, quem lê também participa e contribui comentando, se colocando.

Por que os escritores escrevem?

Adélia Prado
“Boa pergunta. É necessário que eu escreva, acho que é uma necessidade divina de mostrar a Sua face, o espírito quer ser adorado, ele quer ser visto. Deus precisa fatalmente de mostrar a Sua face e a arte é uma mediação para a divindade. Então, neste caso, tenho que ser dócil a este desejo divino. Não obedecer a isto é pecar, é um pecado capital, eu não sou dona disto, não posso falar: não vou escrever mais, isto seria o máximo do orgulho, então eu tenho que escrever.”

Millor Fernandes
“Escrevo porque escrevo, se me pagassem eu só falava”

Clarice Lispector
“Escrevo porque encontro nisso um prazer que não consigo traduzir. Não sou pretensiosa. Escrevo para mim, para que eu sinta a minha alma falando e cantando, às vezes chorando…”

“Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada”

“É preciso coragem. Uma coragem danada. Muita coragem é o que eu preciso. Sinto-me tão desamparada, preciso tanto de proteção…porque parece que sou portadora de uma coisa muito pesada. Sei lá porque escrevo! Que fatalidade é esta?”

"Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas continuarei a escrever."

“Escrevo por ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens."

Minhas desequilibradas palavras são o luxo de meu silêncio. Escrevo por acrobáticas aéreas piruetas – escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio."

"Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro...

Lya Luft
“Escrevo por uma lúdica paixão. Porque nasci para fazer isso. Porque me alegra, me diverte, me instiga — e me exaure. Porque tenho necessidade e prazer em elaborar com palavras esse traçado de tantas vidas, tantas criaturas, tantos destinos e aventuras que povoam minha imaginação, e que acabarão — ou não — vivendo nos meus textos. (...) Escrevo para seduzir leitores que sejam meus cúmplices na inquietação fundamental, na busca de entender o mundo — e jamais o entenderemos. E também escrevo porque desejo uma releitura dos valores familiares e sociais de meu tempo: cada um de meus romances pode e deve ser lido como uma denúncia da hipocrisia, da superficialidade, da indiferença, da negligência e da mentira nas relações humanas, amorosas, familiares e sociais. Os artistas são recipientes de carvões em brasa e têm visões que tentam esconjurar com traços, gestos, música ou palavras — e nesse trânsito entre realidade e sonho, cujas fronteiras para eles pouco importam, vão e vêm entre territórios que igualmente os convocam. Escrevo porque sou parte disso.”

Ferreira Gullar
“A resposta é a mais simples e óbvia: escrevo para me expressar”

Moacyr Scliar
“Escrevo movido por um impulso cuja natureza desconheço (e que não quero conhecer), o mesmo impulso que leva algumas pessoas a desenhar, outras a fazer música, outras a trabalhar a terra.

E, por fim:
"Somos todos escritores, só que alguns escrevem e outros não."
(José Saramago)

terça-feira, 29 de junho de 2010

A vida como arte



                Eu gosto da beleza. Temos o gosto pelo que é belo. Somos todos artistas. Aprendi na psicologia que arte é o que é produzido pelo desejo do indivíduo. Tudo o que é construído livremente por nós, livre das barreiras impostas pela sociedade, família, ou qualquer influência a que possamos nos submeter, é arte. “O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à vida; que a arte seja algo especializado ou feito por especialistas que são artistas. Entretanto, não poderia a vida de todos se transformar numa obra de arte? Por que deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida?” (FOUCAULT, no livro “Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica.” Pág. 261). Eu sou arte e a artista de mim mesma.
                Às vezes, no entanto, e com bastante freqüência, desejo ser arte aos olhos dos outros. Desejo ser admirada, desejo caber no ideal do que os outros tem de arte e beleza. Mas arte não é justamente um não-padrão? Arte é justamente a liberdade de construção de si, e não um encaixar-se no que deseja o outro. Ser belo é relativo, quando se é belo, se é sempre aos olhos de alguém. Pois eu já desejei muito ser bela aos olhos de todos, ou quase todos. Confesso que ainda tenho esse desejo louco. Acredito que a maioria de nós ainda vê a beleza segundo um modelo externo, um modelo de beleza construído por outros, pois o mundo em que estamos inseridos está aí a todo o momento para nos lembrar de quem deveríamos ser. Acaba que a maioria acha mais belo quem está mais em conformidade com o padrão. Já sofri por não me encaixar exatamente nisso. Quem se encaixa exatamente? Todos escapamos de alguma forma do padrão. Sempre tem um detalhe que não se encaixa. E aí queremos mudá-lo. Que loucura! Que droga ter que viver assim. Tem que se viver assim?
                Não, Yasmim, há outros modos de viver. Provavelmente nem todos vão me achar sensacional, mas por que eu quero que todos me achem sensacional? Eu hein. E dá-lhe terapia. Mas, resolvendo essa questão, partamos para a outra: há outros modos de lidar com o que somos para nós e para os outros. Eu opto por lutar e não me render a ser o que querem que eu seja, embora eu ainda não consiga isso sempre. Não é ser exatamente o contrário do que querem de mim, é ser simplesmente o que quero, o que dá, o que tem a ver comigo, mesmo que esse ser coincida até mesmo com o que querem de mim. Quer dizer, mesmo que você queira ter as características que fazem parte do padrão, que esteja consciente da sua escolha, e saiba, que em algum momento você não vai se encaixar neste padrão, e isso não tem que ser motivo pra frustração.
                Diversas pessoas ao longo da minha vida me elogiaram e me disseram coisas maravilhosas que tenho, o que admiram em mim. Mesmo assim, insisto, em algum momentos, em achar que não sou boa o suficiente pra alguns. Perda de tempo. Quanto tempo perdi observando defeitos aos olhos de alguns. Compreendi, no entanto, que tem pessoas que tem olhos que me enxergam. Tem pessoas que tem os óculos certos para ver a minha arte. Sei muito bem que posso ser bela, às vezes esqueço, mas tenho o grande presente de ser lembrada disso. Quem tem o olhar disciplinado pelo padrão provavelmente não vai me ver. Não é que todos os apreciadores da arte vão necessariamente gostar da minha arte. Mesmo quem tem liberdade no olhar pode não apreciar o que tenho, mas certamente alguns deles vão. Não que exista um eu mágico que apenas alguns verão. Cada um verá uma coisa diferente. Mas tem uns que só vêem o que já estão treinados a ver, e não a riqueza do que se tem a oferecer. Não deixe seu olhar perder a riqueza do que o outro tem. Não esqueça do quão rica você é. Gosto de quem me olha e me vê, mesmo tendo a própria interpretação da minha arte, mas me vê. Ao contrário dos que olham um quadro, e ao invés de apreciá-lo, vêem um espelho. Há muitas pessoas que não vêem o outro, não prestam atenção na relação com o outro, mas vêem apenas o que já está escrito no seu código de certo e errado, bonito e feio. “Metade da beleza das coisas está em quem as contempla” – meu pai me disse uma vez.
                É neste sentido que digo que não tenho um tipo preferido de pessoa. Não tenho um ideal de homem, não tenho um ideal de amigo. Embora eu saiba, claro, de algumas características que sei que não gosto. Mas mesmo assim, não me importo em quem você seja, contanto que consigamos estabelecer uma relação interessante. Relação interessante, para mim, é quando os partícipes dela se sentem bem juntos. Não tenho um tipo. Espero conhecer a pessoa e ver se a minha arte sintoniza com a arte dela. Se não sintonizar de cara, e houver vontade, damos um jeito de tatear nossas “almas” e descobrir em que ponto ficamos numa vibe mais próxima.
                Na vida o que há são encontros, como disse Spinoza, e como me lembrou uma nova amiga, uma nova obra de arte sintonizada. Se não nos conectamos agora, pode ser que nos conectemos depois, em outras vibes, em outros momentos, porque tudo muda. Quero, apenas, lembrar sempre que tenho algo de especial que pode fazer conexões fortes com algumas pessoas, e com outras não, mas isto faz parte.  

(Resolvi quebrar o protocolo que eu criei, e postar algo que eu mesma escrevi agora.  Não gosto muito de escrever, ainda. "Escrevo porque preciso" - Clarice Lispector).

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Clarice Lispector - Por não estarem distraídos


"Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali, tudo errou. E havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos."

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Manoel de Barros - Livro sobre o nada





"A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem de suas derrotas.
Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.
Arte não tem perna:
O olho vê, a lembrança revê, a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Isto seja:
Deus deu a forma. Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.
Fazer cavalo verde, por exemplo.
Fazer noiva camponesa voar - como em Chagall.
Agora é só puxar o alarme do silêncio que saio por aí a desformar."

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Elementos para uma cartografia da grupalidade - Peter Pál Pelbart

 "É assim que teria nascido o solitário, aquele que no interior da sociedade desejaria ser cidadão de uma comunidade livre e soberana, precisamente aquela que a sociedade arruinou."

"Ao que Nancy responde, simplesmente: 'La communaute n'a pas eu lieu' (A comunidade nunca existiu)."

"A comunidade tem por condição precisamente a heterogeneidade, a pluralidade, a distância. Daí a condenação categórica do desejo de fusão comunial, pois implica sempre a morte ou o suicídio, de que o nazismo seria um exemplo extremo."

"não se trata de modelar uma essência comunitária, mas antes de pensar a exigência insistente e insólita de comunidade, para além dos totalitarismos que se insinuam de todo o lado (...) Nesse sentido, a exigência de comunidade ainda nos seria desconhecida, é uma tarefa, mesmo com as inquietudes pueris, por vezes confusas, de ideologias comuniais ou conviviais. Por que essa exigência de comunidade nos seria desconhecida? Pois a comunidade, na contramão do sonho fusional, é feita de interrupção, fragmentação, suspense, é feita dos seres singulares e seus encontros. (...) Comunidade como o compartilhamento de uma separação dada pela singularidade."

"Chegamos assim a uma idéia curiosa. Se a comunidade é o contrário da sociedade, não é porque seria o espaço de uma intimidade que a sociedade destruiu, mas quase o contrário, porque ela é o espaço de uma distância que a sociedade, no seu movimento de totalização, não pára de esconjurar."

"Resta-lhes precisamente sua 'originalidade', quer dizer um som que cada uma emite quando põe o pé na estrada, quando leva a vida sem buscar a salvação, quando empreende sua viagem encarnada sem objetivo particular, e então encontra o outro viajante, a quem reconhece pelo som. (...) uma moral da vida em que a alma só se realiza pondo o pé na estrada, exposta a todos os contatos, sem jamais tentar salvar outras almas, desviando-se daquelas que emitem um som demasiado autoritário ou gemente demais, formando com seus iguais acordos e acordes, mesmo fugidios (...) nem individualismo nem comunialismo."

terça-feira, 27 de abril de 2010

Viktor E. Frankl - Em Busca de Sentido

         Do psiquiatra que criou a "logoterapia" (que explora a busca pelo sentido existencial), e que passou pelos sofrimentos terríveis dos campos de concentração.


"Edith Weisskopf-Joelson, que em vida foi professora de Psicologia na Universidade da Georgia, afirmou em seu artigo sobre logoterapia que 'nossa atual filosofia de higiene mental acentua a idéia de que as pessoas deveriam ser felizes, que infelicidade é sintoma de desajuste. Esse sistema de valores poderia ser responsável pela circunstância de o fardo da infelicidade inevitável ser acrescido da infelicidade pelo fato de a pessoa ser infeliz.'"

"a pessoa que enfrenta ativamente os problemas da vida é como o homem que, dia após dia, vai destacando cada folha do seu calendário e cuidadosamente a guarda junto às precedentes, tendo primeiro feito no verso alguns apontamentos referentes ao dia que passou. É com orgulho e alegria que ele pode pensar em toda a riqueza contida nestas anotações, em toda a vida que ele já viveu em plenitude. Que lhe importa que está ficando velho? Terá ele alguma razão para ficar invejando os jovens que vê, ou de cair em nostalgia por ter perdido a juventude? Que motivos terá ele para invejar uma pessoa jovem? Pelas possibilidades que estão à frente do jovem, do futuro que o espera? 'Eu agradeço', é o que ele vai pensar. 'Em vez de possibilidades, realidades é o que tenho no meu passado, não apenas a realidade do trabalho realizado e do amor vivido, mas também a realidade dos sofrimentos suportados com bravura. Esses sofrimentos são até mesmo as coisas das quais me orgulho mais, embora não sejam coisas que possam causar inveja.'"

"No campo de concentração, por exemplo, nesse laboratório vivo e campo de testes que foi, observamos e testemunhamos alguns dos nossos companheiros se portarem como porcos, ao passo que outros agiram como se fossem santos. A pessoa humana tem dentro de si ambas as potencialidades; qual será concretizada, depende de decisões e não de condições."

"Nossa geração é realista porque chegamos a conhecer o ser humano como ele de fato é."

"'Como é possível dizer sim à vida apesar de tudo isso?' Como, para colocar a questão de outra forma, pode a vida conservar o seu sentido potencial apesar dos seus aspectos trágicos? No final das contas, 'dizer sim à vida apesar de tudo' (...), pressupõe que a vida, potencialmente, tem um sentido em quaisquer circunstâncias, mesmo nas mais miseráveis."

"o ser humano está pronto até a sofrer, sob a condição, é claro, de que o seu sofrimento tenha um sentido."

"Na nossa maneira de ver, o ser humano não é alguém em busca da felicidade, mas sim alguém em busca de uma razão para ser feliz."

"Quanto à origem do sentimento da falta de sentido, pode-se dizer, ainda que de maneira muito simplificadora, que as pessoas têm o suficiente com o que viver, mas não têm nada por que viver; têm os meios, mas não tem sentido. Sem dúvida, alguns não têm nem mesmo os meios."

"Semanas, meses, anos mais tarde, dizem-me eles, descobriram que havia uma solução para seus problemas, uma resposta a sua pergunta, um sentido para suas vidas. 'Mesmo que as chances de que as coisas melhorassem seja apenas uma em mil', continua minha explicação, 'quem pode garantir que no seu caso isso não acontecerá, mais cedo ou mais tarde? Mas em primeiro lugar você tem que viver para enxergar o dia em que isto pode acontecer, precisa sobreviver para ver nascer aquele dia, e, de agora em diante, a responsabilidade da sobrevivência não o deixará mais."

"Mas realmente superior é o saber como sofrer, quando se faz necessário."

"Explicar totalmente o crime de alguém seria o mesmo que eliminar sua culpa e vê-lo não como uma pessoa humana livre e responsável, mas como uma máquina a ser consertada."

"Porque o mundo está numa situação ruim. Porém, tudo vai piorar ainda mais se cada um de nós não fizer o melhor que puder."



sábado, 24 de abril de 2010

Universo Moral de Jovens Internos da Febem - Noguchi e La Taille


"Não parece faltar-lhes disciplina, portanto. Mas tal disciplina incide sobre regras que eles mesmos instituíram. Ora, o que os educadores desejariam é que obedecessem a outras regras, as da instituição. Para tanto, há duas formas possíveis. Uma delas é pelo exercício da força: exigir obediência mediante ameaças de sanções. A outra seria pelo exercício da autoridade, o que pressuporia que os jovens vissem, na figura dos educadores, pessoas imbuídas de alguma legitimidade para mandar. Porém, sabe-se, não é o caso. Ao contrário: não é no que chamam de 'mundão' que se encontram os valores dignos de serem respeitados (e os educadores fazem parte desse 'mundão'), mas sim no 'mundo do crime', com suas leis que possuem legitimidade aos olhos dos jovens. Em suma, parece-nos que uma prática disciplinar que realmente possa ter efeitos é impossível. Seria necessário promover, de alguma forma, relações de cooperação, que parecem ser inéditas para esses jovens, e que lhes possibilitariam pelo menos intuir novas formas de relacionamento entre as pessoas".

"É com dor psíquica que observam janelas de carros se fecharem quando chegam, que percebem os desvios que as pessoas fazem para não se aproximar deles, que notam expressões de antipatia nos olhares a eles dirigidos. Vimos nas falas de nossos sujeitos que eles dividem a sociedade em 'nós' e 'eles', e que esses "eles" refere-se às pessoas de um 'outro mundo, honesto'. Mas deve-se convir que tal oposição também é feita pelos membros desse 'mundão'. Não se trata, para os jovens da Febem, de uma vontade misteriosa e gratuita de se diferenciar das outras pessoas, mas, sim, de uma das consequências de sua exclusão. O que sobra para construir representações positivas de si senão escolher outras que as valorizadas pela sociedade em geral? Senão até, escolher aquelas que se opõem aos olhares de desprezo e humilhação. Perguntado de outra forma: como existir aos olhos da sociedade senão dando valor àquilo mesmo que os exclui dela?"

sábado, 17 de abril de 2010

Meus livros


Zygmunt Bauman - Globalização. As Consequências Humanas.


"Para alguns, 'globalização' é o que devemos fazer se quisermos ser felizes; para outros, é a causa da nossa infelicidade. Para todos, porém, "globalização" é o destino irremediável do mundo, um processo irreversível."

"Em contraste com os ausentes proprietários fundiários do início dos tempos modernos, os capitalistas e corretores imobiliários da era moderna recente, graças à mobilidade dos seus recursos agora líquidos, não enfrentam limites reais o bastante - sólidos, firmes, resistentes - que obriguem ao respeito."

"Com o tempo de comunicação implodindo e encolhendo para a insignificância do instante, o espaço e os delimitadores de espaço deixam de importar, pelo menos para aqueles cujas ações podem se mover na velocidade da mensagem eletrônica."

"a comunicação barata inunda e sufoca a memória, em vez de alimentá-la e estabilizá-la."

"Alguns podem agora mover-se para fora da localidade - qualquer localidade - quando quiserem. Outros observam, impotentes, a única localidade que habitam movendo-se sob seus pés."

"No Panóptico, alguns residentes locais selecionados observam outros moradores locais (e, antes do advento do Panóptico, habitantes locais comuns observavam os selecionados dentre eles). No Sinóptico, os habitantes locais observam os globais."

"o mundo não parece mais uma totalidade e, sim, um campo de forças dispersas e díspares, que se reúnem em pontos díficeis de prever e ganham impulso sem que ninguém saiba realmente como pará-las."

"A necessária redução do tempo é melhor alcançada se os consumidores não puderem prestar atenção ou concentrar o desejo por muito tempo em qualquer objeto; isto é, se forem  impacientes, impetuoso, indóceis e, acima de tudo, facilmente instigáveis e também se facilmente perderem o interesse. A cultura da sociedade de consumo envolve sobretudo o esquecimento, não o aprendizado."

"O tipo de cultura de que participa não é a cultura de um determinado lugar, mas a de um tempo. É a cultura do presente absoluto."

"Tanto o turista quando o vagabundo foram transformados em consumidores, mas o vagabundo é um consumidor frustrado."

"Eles quebram a norma e solapam a ordem. São uns estraga-prazeres meramente por estarem por perto, pois não lubrificam as engrenagens da sociedade de consumo, não acrescentam nada à prosperidade da economia transformada em indústria do turismo. São inúteis, no único sentido de "utilidade" em que se pode pensar numa sociedade de consumo ou de turistas. E por serem inúteis são também indesejáveis. Como indesejáveis, são naturalmente estigmatizados, viram bodes expiatórios."

"A espetaculosidade - versatilidade, severidade e disposição - das operações punitivas importa mais que sua eficácia, que de qualquer forma, dada a indiferença geral e a curta duração da memória pública, raramente é testada."

"As pessoas que cresceram numa cultura de alarmes contra ladrões tendem a ser entusiastas naturais das sentenças de prisão e de condenações cada vez mais longas. Tudo combina muito bem e restaura a lógica ao caos da existência."

Clarice Lispector - Perto do Coração Selvagem


"A liberdade que às vezes sentia. Não vinha de reflexões nítidas, mas de um estudo como feito de percepções por demais orgânicas para serem formuladas em pensamentos. Às vezes, no fundo da sensação tremulava uma ideia que lhe dava leve consciência de sua espécia e de sua cor."

"Através dessas percepções - por meio delas fazia existir alguma coisa - ela se comunicava a uma alegria suficiente em si mesma."

"Nada acontecia se ela continuava esperando o que ia acontecer."

"E de repente não compreendeu como pudera acreditar em responsabilidade, sentir aquele peso constante. Ela era livre... como tudo se simplificava às vezes..."

Clarice Lispector - A Hora da Estrela


"O definível está me cansando um pouco. Prefiro a verdade que vem no prenúncio."

"Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior e inexplicável, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar."

"Maz o vazio tem o valor e a semelhança do pleno. Um meio de obter é não procurar, um meio de ter é o de não pedir e somente acreditar que o silêncio que eu tenho em mim é resposta a meu - a meu mistério."

"Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite. Embora não aguente bem ouvir um assobio no escuro, e passos."

"Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar pra mim na Terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser."

Clarice Lispector - O Ovo e a Galinha

"Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o
entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro."

Clarice Lispector - Mal Estar de um Anjo


"Não podia me dar ao luxo de pedir, lembrei-me de todas as vezes em que, por ter tido a doçura de pedir, não me deram."

Clarice Lispector - Uma Amizade Sincera


"Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo."

"Só muito depois eu ia compreender que estar também é dar."

Clarice Lispector - Perdoando Deus


"Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil."

"É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa."
 
"Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de "mundo" esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza?"

"Eu, que jamais me habituei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu."

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