sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

A Perfeição do Banho

Estava agora pouco tomando banho quando me vieram várias idéias. Todo meu ritual atento de banho e pós-banho, com meus vários produtos de higiene e beleza, foram distraídos dessa vez. Comecei a ficar nervosa porque precisava escrever as tais idéias. São danadas, costumam vir nas horas mais impróprias: dirigindo, na hora de dormir, no banho, ... E já agora estou pensando tantas outras coisas que to com medo de perder o que eu pensei em primeiro lugar e deu início a isso. Eu tive idéias. Não gosto do que Deleuze fala sobre “ter idéias”, diz que são momentos raros e para poucos. Acho que a gente tem muitas idéias. Acho que o brasileiro tem muitas idéias. Não tenho idéias geniais, são idéias medíocres, mas são minhas idéias, são uns pensamentos. Como agora: saí do banho e tinha que escrever; o papel tá no meu quarto, em uma gaveta tapada pela cama onde a gringa tá dormindo. Peguei um jornal aqui pela sala mesmo. Peguei o primeiro jornal que vi que tinha mais espaço em branco. Acho que jornais deveriam ter mais espaço em branco, pra gente escrever quando tem essas idéias que não dão tempo de procurar papel. Da mesma forma que jornal, principalmente O Globo, é muito útil pra embrulhar coisa de quebrar e limpar bunda em emergência. Curiosamente, o caderno que eu peguei do jornal se chama “Boa Chance”. A capa tem bastante espaço pra rabiscar, mas acabei escrevendo por cima de tudo.
Pois então. De baixo do chuveiro me lembrei, com um pouco de saudade, de algo que não tinha ainda parado pra pensar: o modo como eu usava o corredor do meu antigo prédio. Onde morei vinte anos. De repente lembrei que quando eu queria ficar sozinha, já que eu não tinha meu próprio quarto, ia deitar no chão do corredor. E isso não era estranho pros meus vizinhos que às vezes passavam enquanto eu estava lá estatelada. Tínhamos certa intimidade, coisa de quem divide os mesmos corredores há anos. Os corredores eram pontos de encontros e paradas, mesmo tendo um playground super amplo. As mães paravam no corredor pra sentar, fumar (não tinha ventilação), e colocar as fofocas em dia. Eu brincava com as outras crianças no corredor, corria com a minha cachorra, e, mais tarde, conversava sobre meninos com as amigas. Fazíamos unha e derramávamos acetona no chão do corredor. A minha marca manchada de acetona está lá até hoje, acho eu. Tanta coisa acontecia naqueles corredores! Coisas até secretas. Secretíssimas! Coisas que eu só conto pro tipo de pessoa que eu pararia pra sentar e conversar no corredor. E outras que não contei a ninguém.
De repente comecei a sentir meu passado tão perfeito, e como perdemos de vista quanta perfeição reside no presente! De repente comecei a sentir tanta exatidão. Foi na hora desse devaneio de exatidão que, depois do banho, passei o creme errado na parte errada do corpo. Logo na hora da intuição-de-perfeição isso me acontece. Mas até o erro entrou na onda da perfeição. Senti que todo o erro, apesar de ser erro, é perfeito. Da mesma forma que o vento forte, com extrema exatidão, derrubou ontem meu quadro da parede, e o quadro caiu exato no chão. Nesse momento, pra mim, tudo o que está fora do lugar está exatamente. Me sinto bem com essa espécie de aceitação (o que não é o mesmo que comodismo, pois se o quadro cai, eu me levanto para colocá-lo no lugar que eu quero que esteja).
O corredor do meu prédio atual não tem o que o outro tinha, no corredor daqui eu só existo mesmo de passagem, sem intimidades com ele. Mas tem outro nível de perfeição, e talvez eu veja nele outros sentidos, do tipo que a gente só vê quando toma banho depois que o tempo passou.

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